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Por Walden Bello, Foreign Policy in Focus (FPIF) | Tradução: Antonio Martins
Nos anos 1990, o pensamento dominante sustentou que estávamos entrando em uma era, conhecida como globalização; que o livre comércio e os fluxos de capital sem obstáculos, em uma economia global sem fronteiras, levariam ao melhor dos mundos possíveis. A maior parte das elites econômicas, políticas e intelectuais do Ocidente comprou essa visão. Ainda me lembro de como o venerável Thomas Friedman, do New York Times, zombou daqueles que resistíamos a essa visão, chamando-nos de “terraplanistas”. Ainda recordo a igualmente venerável revista Economist chamando as atenções sobre mim, por ter cunhado o termo “desglobalização”. Não para me aclamar como um profeta, mas como um tolo pregando um retorno a um passado jurássico.
Trinta anos depois, este terraplanista não sente orgulho algum de ter previsto o caos em que nos metemos, no qual globalização desenfreada teve papel destacado. As maiores taxas de desigualdade em décadas, pobreza crescente tanto no Norte Global quanto no Sul Global, desindustrialização nos Estados Unidos e em muitos outros países, endividamento massivo de consumidores no Norte Global e de países inteiros no Sul Global, uma crise financeira atrás da outra, a ascensão da extrema direita, mudança climática descontrolada e intensificação do conflito geopolítico. A globalização não levou a uma nova ordem mundial, mas a um Admirável Mundo Novo à moda de Huxley

Retratos de uma Era Sombria
Vou apresentar três imagens da era da globalização que agora estamos deixando para trás:
Retrato nº 1: A Apple foi uma das principais beneficiárias da globalização. A empresa iderou a fuga dos limites das economias nacionais para criar cadeias de suprimentos globais, sustentadas por mão de obra barata. Cito o New York Times a respeito:
A Apple emprega 43 mil pessoas nos Estados Unidos e 20 mil no exterior, uma pequena fração dos mais de 400 mil trabalhadores norte-americanos da General Motors nos anos 1950, ou das centenas de milhares na General Electric nos anos 1980. Muitas mais pessoas trabalham para as contratadas da Apple: outras 700 mil pessoas projetam, constroem e montam iPads, iPhones e outros produtos. Mas quase nenhuma delas trabalha nos Estados Unidos. Em vez disso, trabalham para empresas estrangeiras na Ásia, Europa e outros lugares, em fábricas das quais quase todas as empresas que desenham eletrônicos dependem, para fabricar seus produtos.
A Apple, é claro, não estava sozinha no movimento para desindustrializar os Estados Unidos. Foi acompanhada pelas coirmãs do setor de TI – Microsoft, Intel e Nvidia; pelas montadoras GM, Ford e Tesla; pelos gigantes farmacêuticos Johnson & Johnson e Pfizer; e por outras líderes em outros setores e serviços, como Procter & Gamble, Coca-Cola, Walmart e Amazon, para citar apenas algumas. O destino favorito foi a China, onde os salários correspondiam, à época, a 3-5% dos salários dos trabalhadores nos Estados Unidos. Estima-se, de forma conservadora, que o “Choque da China” tenha levado à perda de 2,4 milhões de empregos norte-americanos. O emprego na manufatura caiu para 11,7 milhões em outubro de 2009, uma perda de 5,5 milhões, ou 32% de todos os empregos no setor, a paritr de outubro de 2000. A última vez em que menos de 12 milhões de pessoas trabalharam no setor manufatureiro nos EUA foi antes da Segunda Guerra Mundial, em 1941.
Retrato nº 2: A remoção das barreiras ao livre fluxo de capital global levou à crise da dívida do Terceiro Mundo no início dos anos 1980, que quase derrubou o Citibank e outras instituições financeiras norte-americanas, e à crise financeira asiática de 1997, que derrubou as chamadas economias milagrosas asiáticas. A eliminação dos controles de capitais globais foi acompanhada pela desregulamentação do sistema financeiro dos EUA, o que levou à criação de esquemas massivos de obtenção de lucro por meio da chamada mágica da engenharia financeira, como a negociação frenética de hipotecas subprime. Quando os títulos subprime foram expostos como “podres”, em 2008, milhões de pessoas faliram e perderam suas casas e todo o sistema global ficou à beira do colapso em 2008. Foi salvo apenas pelo resgate dos bancos norte-americanos, com dinheiro dos contribuintes, na ordem de mais de US$ 1 trilhão.
O Retrato nº 3 é o resumo do famoso economista francês Thomas Piketty sobre a tragédia econômica dos Estados Unidos no primeiro quartel do século XXI.
Quero enfatizar que a palavra “colapso” [no caso dos Estados Unidos] não é um exagero. Os 50% inferiores, na pirâmide da distribuição de renda detinham cerca de 20% da renda nacional de 1950 a 1980; mas essa participação foi reduzida quae à metade, caindo para apenas 12% em 2010–2015. A participação do centil superior seguiu na direção oposta, de apenas 11% para mais de 20%.
Paralelamente a esse aumento massivo da desigualdade nos Estados Unidos, houve um aumento da pobreza. Globalmente, de acordo com dados disponíveis, desde as crises financeiras de 2007-08, a desigualdade de riqueza aumentou, e agora o 1% mais rico detém metade da riqueza total das pessoas no planeta.
Vamos deixar de lado essa releitura nostálgica do passado e voltar à nossa boa amiga Apple. Ela agora está liderando o chamado processo de “reshoring” (relocalização). Leu os sinais nas estrelas e, embora isso afete negativamente seu lucro final e desorganize suas operações, está liderando, para proteger o restante de seus super lucros, a relocalização de suas cadeias de suprimentos, com um investimento planejado de US$ 600 bilhões na fabricação dentro dos Estados Unidos de iPhone, iPad, MacBook, bem como na fabricação de chips semicondutores. Alardeando que os planos de manufatura da Apple criarão supostamente 450 mil empregos nos Estados Unidos, o CEO Tim Cook admitiu ser um refém da pressão de Trump para desglobalizar as operações das empresas norte-americanas, afirmando: “O presidente disse que quer mais nos Estados Unidos… então nós queremos mais nos Estados Unidos.” Onde a Apple vai, outros seguem, entre elas as fabricantes de chips norte-americanas Intel e Nvidia, a líder automotiva Tesla e a gigante farmacêutica Johnson & Johnson.
Mas as empresas estadunidenses não são as únicas reféns da política. Entre as companhias estrangeiras que cederam ao impulso ultraprotecionista de Trump por meio de aumentos unilaterais de tarifas, regionalizando ou nacionalizando suas linhas de suprimento, estão a Hyundai Motors, a Honda Motors, a Samsung Electronics, a fabricante taiwanesa de chips TSMC e a empresa farmacêutica Sanofi.
Embora a relocalização tenha avançado aos tropeços na última década, sob o primeiro governo Trump e o governo Biden, é provável que se acelere nos próximos anos, apesar de restrições e ineficiências, à medida que o nacionalismo econômico cresce nos Estados Unidos e no Ocidente. Em 2023, um estudo exaustivo sobre empresas norte-americanas mostrou que mais de 90% das corporações industriais da região haviam movido pelo menos parte de sua produção ou cadeia de suprimentos nos últimos cinco anos. Outro estudo realizado ao mesmo tempo mostrou que, até 2026, 65% das empresas pesquisadas estariam comprando a maioria dos itens essenciais de fornecedores regionais, em comparação com apenas 38% em 2023. Como Trump impôs tarifas unilaterais ao México e ao Canadá, as empresas estão percebendo que não será suficiente mudarem-se para os parceiros do NAFTA para apaziguar Trump. Elas terão que se realocar nos próprios Estados Unidos, apesar da ruptura e do caos que possam acompanhar esse processo, como o que viu 300 trabalhadores vitais para a instalação da Hyundai na Geórgia serem presos pela ICE (Polícia de Imigração) e deportados para a Coreia.
A revolta: desencadeada pela esquerda, capturada pela direita
A tremenda raiva e ressentimento globais diante da distopia à qual a globalização liderada pelas corporações nos levou é talvez a maior razão pela qual a desglobalização será a tendência por muito, muito tempo. Essa revolta surgiu primeiro entre a esquerda, que infligiu um revés do qual a globalização corporativa nunca se recuperou durante a histórica Batalha de Seattle em dezembro de 1999. Mas foram Donald Trump e outras forças da extrema direita que cavalgaram com sucesso essa revolta, para chegarem ao triunfo político nos Estados Unidos e na Europa nas décadas seguintes.
Em outras palavras, a política da revolta, e não a economia da eficiência estreita a serviço da rentabilidade corporativa, é o que agora comanda. Nos Estados Unidos, a globalização criou duas comunidades antagônicas: uma que se beneficiou do processo, devido à sua educação e renda superiores, a outra que sofreu com ela devido a suas desvantagens tanto econômicas quanto educacionais. Esta última é o vasto setor da população que Hillary Clinton chamou de “deploráveis”, mas que é mais conhecido como o povo do “Make America Great Again” ou base MAGA. Essa comunidade não esquecerá facilmente nem os sofrimentos provocados pela desindustrialização liderada pela Apple e outras transnacionais conhecidas, nem as ofensas que sofreram de Hillary, a quem consideram estar no bolso de Wall Street.
Uma segunda razão para a força da onda de desglobalização é que a ordem multilateral – que servia como biombo político ou sistema de governança para o livre comércio e fluxos de capital sem obstáculos – está à beira do colapso. A Organização Mundial do Comércio (OMC), que já foi descrita como a joia da coroa do multilateralismo, não é mais capaz de governar o comércio mundial, em parte devido a sabotagens dos Estados Unidos. Sob Obama e depois Trump e Biden. Washington não pôde mais contar com decisões favoráveis em disputas comerciais. O Fundo Monetário Internacional não se recuperou de sua reputação de promover a “austeridade” nos países em desenvolvimento e seu impulso por fluxos de capital sem freios que derrubaram as economias dos tigres asiáticos. O Banco Mundial também está desacreditado por sua cumplicidade na imposição de medidas de “austeridade”, bem como pela política equivocada de industrialização orientada para a exportação para os mercados do Norte Global que prescreveu como a rota para a prosperidade dos países em desenvolvimento. Esta rota agora é especialmente fatal para aqueles que a seguiram, dado o ultraprotecionismo que varre os Estados Unidos.
Em terceiro lugar, a segurança nacional, tanto a segurança econômica quanto a segurança militar, substituiu a prosperidade por meio do comércio e do investimento como a principal consideração nas relações entre países. Tanto o governo Biden quanto o governo Trump proibiram a transferência de chips de computador avançados para a China, e mais medidas desse tipo virão. Reorganizar e regionalizar – quando não nacionalizar – o acesso e as linhas de suprimento para recursos-chave de tecnologias avançadas como lítio, terras raras, cobre, cobalto e níquel é agora uma preocupação primordial, com o objetivo não apenas de monopolizar essas commodities sensíveis, mas também de impedir que concorrentes se apossem delas.
Dois Caminhos para um Mundo Desglobalizado
A questão não é a inevitabilidade da desglobalização, mas a forma que o processo assumirá. A desglobalização marcada pelo ultraprotecionismo nas relações comerciais, pelo unilateralismo e isolacionismo nas relações econômicas e militares, e pela criação de um mercado interno voltado principalmente para os interesses da maioria racial e étnica é uma maneira de desglobalizar. Esse é o rumo para o qual Trump está liderando os Estados Unidos.
Mas existe outra maneira de desglobalizar, cujos elementos-chave apresentei no meu livro Desglobalização: Ideias para uma Nova Economia Mundial, há 25 anos.
Primeiro, não exigimos um retorno à autarquia, mas sim uma participação contínua na economia internacional, porém de forma que garanta que, em vez de inundá-la, as forças do mercado internacional sejam aproveitadas para ajudar a construir a capacidade de sustentar uma economia doméstica vibrante.
Segundo, propomos que, por meio de uma combinação criteriosa de medidas redistributivas que promovam a igualdade e de tarifas e cotas razoáveis, o mercado interno volte a ser o motor de uma economia saudável, em vez de ser um apêndice de uma economia orientada para a exportação.
Terceiro, promovemos a participação em uma pluralidade de agrupamentos econômicos – aqueles que permitem aos países manter um espaço político para o desenvolvimento, em vez de aprisioná-los em um único organismo global, a Organização Mundial do Comércio, com um conjunto uniforme de regras, que favorece os interesses das corporações transnacionais em vez de os interesses de seus cidadãos.
Quarto, inspirados pelo trabalho de Karl Polanyi, defendemos a reinserção do mercado na comunidade, de modo que, em vez de conduzi-la, como no capitalismo global, o mercado fique sujeito aos valores e ritmos da comunidade.
E finalmente, em contraste com a extrema direita, sustentamos a noção de comunidade como aquela em que a participação não é determinada por sangue ou etnia, mas por uma crença compartilhada em valores democráticos.
Essa é a alternativa que oferecemos um quarto de século atrás. Esse sistema fluido de comércio internacional capaz de permitir, especialmente às economias do Sul Global, o espaço para buscar um desenvolvimento sustentável não está distante do sistema comercial global flexível anterior à decolagem da globalização, no final dos anos oitenta — o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, GATT. Vinte e cinco anos atrás, promovíamos e continuamos a promover uma rota de desglobalização progressiva, que evita, por um lado, o extremo da distopia doutrinária da globalização liderada pelas corporações e, por outro, o unilateralismo e protecionismo selvagens.
Esse caminho para a desglobalização não é novo, nem, alguns alegariam, particularmente radical. O consenso de senso comum de Keynes, abordando a situação global nos anos 1930, é muito relevante para os nossos tempos: “Que as mercadorias sejam feitas em casa sempre que for razoável e convenientemente possível, e, acima de tudo, que as finanças sejam primordialmente nacionais.”
Se tivéssemos seguido esse caminho, ouso dizer, é muito provável que não estaríamos imersos no caos terrível em que o mundo se encontra hoje, com a ameaça não apenas de guerra comercial, mas de guerra real à sua porta. Ainda há tempo para seguir esse caminho, mas a janela de oportunidade está se fechando rapidamente.
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