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Promef e a Lava Jato: renascimento e colapso da indústria naval brasileira

Há 20 anos, em 10 de outubro de 2005, o presidente Lula lançava o Programa de Modernização e Expansão da Frota Nacional de Petroleiros (Promef). O programa previa a construção de dezenas de embarcações em estaleiros nacionais, com exigência de percentuais elevados de equipamentos e materiais fabricados no Brasil.

A política foi fundamental para revitalização da indústria naval brasileira, que havia entrado em declínio nos anos 80. Em apenas cinco anos, o Brasil passou a ter o 6º maior parque industrial naval do mundo, ultrapassando até mesmo os Estados Unidos.

O programa, no entanto, foi abruptamente interrompido pela Operação Lava Jato. A partir de 2014, a Petrobrás sofreu uma tentativa de desmonte, tendo seus contratos suspensos e linhas de crédito bloqueadas. Sem acesso a encomendas e financiamentos do BNDES, a maioria dos estaleiros faliu e a indústria naval, novamente, entrou em colapso.

A ascensão

Dotado de um vaso litoral que se estende por mais de 7.400 quilômetros, centenas de terminais portuários e dependente do comércio marítimo para escoar mais de 97% de suas exportações, o Brasil sempre foi visto com um local estratégico para o desenvolvimento de uma potente indústria naval.

Os benefícios gerados pela consolidação de um parque industrial naval seriam inúmeros. A construção naval é uma indústria intensiva em capital, com um efeito multiplicador na economia. Cada navio construído mobiliza uma vasta cadeia produtiva, envolvendo setores como siderurgia, metalurgia, eletrônica, engenharia e logística.

As primeiras tentativas de desenvolvimento de uma indústria naval no Brasil surgem em meados do século 19, quando Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, adquiriu os Estaleiros da Ponta d’Areia. A empresa chegou a produzir dezenas de embarcações, mas faliu em meio à grave crise econômica que atingiu o Brasil na década de 1870.

Durante a Primeira República e o Estado Novo, existiram iniciativas pontuais de fomento à indústria naval, mas quase todas foram muito limitadas ou mal estruturadas, não gerando frutos. Mesmo os projetos de priorização da cabotagem nacional foram prejudicados pela ausência de um parque siderúrgico, o que tornava o Brasil muito dependente de importações.

O marco inicial de uma política efetiva de desenvolvimento da indústria naval somente ocorreu com a instituição do Plano de Metas, criado por Juscelino Kubitschek em 1956. Por intermédio do Fundo de Marinha Mercante (FMM), Juscelino investiu na construção e reforma de estaleiros, objetivando utilizar a indústria naval como um dos pilares para a expansão parque industrial brasileiro.

No início dos anos 60, João Goulart ajudaria a consolidar esse projeto, visando impulsionar a política de substituição de importações e diminuir as despesas com afretamento de embarcações estrangeiras.

O programa de desenvolvimento da indústria naval era tão estratégico que foi mantido pelos militares após o golpe de 1964. O regime militar concentrou os investimentos no setor através do Plano de Emergência e dos dois Programas de Construção Naval.

Após fundar a Superintendência Nacional de Marinha Mercante (SUNAMAM), o governo passou a subvencionar os armadores e a instituir medidas de proteção comercial — nomeadamente a política de conferência, que reservava 40% do volume de frete às embarcações de bandeira brasileira.

Os incentivos foram prolíficos. Na década de 1970, o Brasil já possuía o segundo maior parque industrial naval do mundo. O país concentrava inúmeros estaleiros e atendia encomendas para construção de navios oriundas de todo o planeta.

O Rio de Janeiro se tornou o centro nervoso da indústria naval — que se converteu em uma atividade tão essencial para o estado quanto a indústria automobilística era para São Paulo.

A queda

A indústria naval brasileira entrou em crise na década de 1980, quando o país sofreu uma forte recessão. O choque do petróleo, a crise da dívida externa e a crise da moratória mexicana forçaram o governo a promover sucessivas maxidesvalorizações da moeda, dando origem à hiperinflação. O súbito aumento dos custos de produção tornou a indústria brasileira menos competitiva, ao mesmo tempo em que retirou do governo a capacidade de investimento.

Em paralelo a esse processo, o Brasil testemunha a ascensão do ideário neoliberal. A visão do Estado como indutor do desenvolvimento foi gradualmente substituída pelo conceito de “laissez-faire”, isso é, a defesa da “não intervenção” na economia.

O processo de redemocratização ocorreu em paralelo à consolidação de pautas como Estado mínimo, abertura da economia, corte de investimentos públicos e privatização. Em 1987, já no governo Sarney, a SUNAMAM foi extinta e a política de desenvolvimento do setor naval foi completamente desmontada.

O sucateamento do setor naval se aprofundou após a eleição de Fernando Collor, responsável por impor o cumprimento integral do receituário neoliberal ditado pelo “Consenso de Washington” — cartilha com recomendações sobre austeridade fiscal, privatizações e abertura econômica que as nações periféricas tinham de seguir para ter acesso ao crédito e avaliações positivas junto às instituições financeiras internacionais.

A abertura indiscriminada do setor e o fim dos subsídios à produção levou à quebra generalizada dos armadores nacionais, incapazes de fazer frente à concorrência internacional. Dezenas de milhares de trabalhadores perderam seus empregos e o país, outrora detentor do segundo maior parque industrial naval do mundo, voltou a importar peças, plataformas e navios.

. Presidente Lula e Marisa Letícia participam do batismo da P-51, em cerimônia realizada no estaleiro BrasFels, Angra dos Reis. Fotografia de Ricardo Sutckert.
Biblioteca da Presidência da República

O renascimento

Foi somente após a eleição de Lula que o governo brasileiro deu início a uma tentativa de recompor sua indústria naval. A Petrobras seria instrumento central deste esforço. A empresa passou a exigir que os navios de apoio marítimo utilizados em suas operações fossem de bandeira brasileira e determinou o uso prioritário dos estaleiros nacionais para aquisição de navios e equipamentos de exploração e produção de petróleo.

Esse processo foi normatizado através da política de conteúdo local, que determinava que 60% de toda a infraestrutura utilizada na extração de petróleo no Brasil teria de ser fabricada no país — percentual que chegava a 75% para algumas operações. A priorização dos estaleiros nacionais na aquisição de embarcações e a política de conteúdo local resultaram na aplicação de 17,8 bilhões de reais na combalida indústria naval, levando ao ressurgimento do setor.

Em outubro de 2005, Lula implementou o Programa de Modernização e Expansão da Frota Nacional de Petroleiros (Promef), autorizando a compra de 49 novos navios petroleiros. O programa impulsionou ainda mais a retomada da indústria naval brasileira e o número de trabalhadores empregados no setor saltou de 3 mil em 2002 para 80 mil em 2010.

Os investimentos na construção de novas instalações fabris também foram expressivos. Foram construídos 18 novos estaleiros, totalizando 37 unidades, incluindo os gigantescos polos navais de Rio Grande (no Rio Grande do Sul), Atlântico Sul (em Pernambuco) e de Ilha/Mauá (no Rio de Janeiro). Em 2010, a carteira de pedidos dos estaleiros chegou a 269 contratos, incluindo petroleiros, plataformas e navios de apoio.

A descoberta de reservas de petróleo e gás natural na camada geológica do pré-sal em 2006 demandou a ampliação dos investimentos na indústria naval — que se tornou um dos setores estratégicos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) lançado no ano seguinte.

Mais de 11,6 bilhões de reais foram aplicados no fortalecimento do parque industrial naval brasileiro no âmbito do PAC. O Fundo de Marinha Mercante também foi reavivado, com a ampliação de recursos da ordem de 360%, chegando a 2,6 bilhões de reais em 2010.

O volume total de cargas transportadas por navios de bandeira brasileira cresceu 68% no período e o país voltou a ostentar um dos maiores parques industriais navais do mundo. Em 2009, o setor de construção naval do Brasil ultrapassou os Estados Unidos e se tornou o sexto maior do planeta, atrás apenas da China, Coreia do Sul, Japão, União Europeia e Índia.

O colapso após a Lava Jato

Os esforços para recuperar a indústria naval brasileira, entretanto, foram destruídos pela Operação Lava Jato. Empresas que se tornaram alvos da operação, tais como Odebrecht, Camargo Correa, OAS e UTC, eram sócias majoritárias de vários estaleiros navais.

Principal comitente do setor, a Petrobras viu-se forçada a reduzir drasticamente seus investimentos, congelar encomendas, vender ativos e paralisar obras, gerando efeitos devastadores.

A crise se aprofundou ainda mais a partir do impeachment de Dilma Rousseff em 2016. O novo governo de Michel Temer deu início ao desmonte parcial da Petrobrás e abandonou as políticas de fomento à indústria nacional.

A Lei 13.365/2016 tornou facultativa a participação da Petrobras em licitações e cortou a reserva de conteúdo local para 25%, estimulando as importações. Leilões de petróleo passaram a priorizar petroleiras estrangeiras, que optaram por estaleiros chineses e coreanos, onde os custos são menores.

O resultado foi a quebra generalizada da indústria naval brasileira, com o fechamento de estaleiros, perda de capacidade produtiva e tecnológica e desemprego em massa. Em apenas três anos, mais de 300 mil trabalhadores da indústria naval e da cadeia produtiva associada perderam seus empregos. Inúmeras empresas de construção naval fecharam as portas.

Estaleiros, plataformas, navios abandonados e canteiros vazios tornaram-se o cenário prevalente do setor, cuja capacidade operacional regrediu para os patamares dos anos 90.

Mais uma vez, coube ao presidente Lula a tarefa de retomar os investimentos no setor. Em outubro de 2025, o presidente anunciou um pacote voltado à reestruturação da indústria naval, destinando R$ 612 milhões de reais para a construção de 80 embarcações, financiadas através do Fundo da Marinha Mercante.

Lula também anunciou o retorno das atividades do Estaleiro Enseada, em Maragogipe, Bahia, que estava abandonado há 10 anos. A expectativa do governo é de que que as políticas de incentivo à produção naval possam fomentar investimentos de até R$ 23 bilhões e gerar mais de 40 mil empregos.

 

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