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Título Original:
O STF julga o futuro do trabalho: uma resposta ao advogado da Rappi
O Brasil pode estar diante de um momento histórico, e de um enorme risco. O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará em breve processos que podem impactar profundamente o mundo do trabalho. No dia 1º de outubro, após o Ministro Edson Fachin assumir a presidência do tribunal, entraram em julgamento dois casos que tramitavam paralelamente na casa: a Reclamação 64.018 (Rappi) e o Recurso ordinário 1.446.336 (Uber). Os dois colocam em disputa o reconhecimento do vínculo de emprego entre os trabalhadores e as plataformas digitais. A decisão que será tomada nos próximos dias sobre estes casos terá desdobramentos em outros milhares de processos e reclamações atualmente tramitando na justiça do trabalho.
No primeiro dia do julgamento, as empresas fizeram as suas defesas. No caso da Rappi, seu advogado foi um ex-ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) (entre 2007 e 2021), Marcio Eurico Vitral Amado. Em sua fala, citou um texto resultado da pesquisa que tenho coordenado desde 2020, sobre o trabalho em plataformas digitais. Ao citá-la de forma descontextualizada, o advogado instrumentalizou os dados da pesquisa para uma conclusão oposta à nossa. É por conta disso que escrevo esta resposta.

Para começar, reproduzo a fala de Marcio Amado na tribuna do STF:
“O departamento de sociologia da UnB foi à campo e fez a pergunta: quem é, o que são e o que querem estes trabalhadores? Esta pesquisa está num livro magnífico, As novas infraestruturas produtivas: digitalização do trabalho, e-logística e indústria 4.0i. São mais de uma dezena de artigos científicos e esta pesquisa abre este livro. Este livro foi organizado pelos professores Ricardo Festi e Jörg Nowak. Uma pesquisa muito longa, muito extensa, que buscou identificar os problemas desta categoria de trabalhador. E aonde ela chegou, resumidamente? 64,1% destes trabalhadores preferem trabalhar como autônomo. 24,7% preferem ou querem ser microempreendedores individuais (que também são autônomos). Apenas 11,3% destes transportadores gostariam de trabalhar sob um contrato por prazo determinado, ou seja, sob regime da CLT. E aqui, cabe a indagação: porque 88% destes trabalhadores não querem saber desta maravilha que é a CLT? Porque, senhoras e senhores, diferentemente de um celetista, que cumpre uma jornada rígida e fiscalizada de no mínimo 8 horas diárias, sob tacão, sob a vigilância ferrenha de um empregador, aqui este trabalhador pode num determinado momento dizer: ‘hoje é a apresentação de ballet da minha filha, da minha neta lá na escolinha que ela estuda e eu vou lá assistir’. E ele desliga o sistema. ‘Hoje eu não quero trabalhar nesta plataforma. Eu vou trabalhar para a plataforma x, y ou z’. É isso que eles querem! Eles querem autonomia.”ii
Os dados que o advogado citou foram coletados por meio de uma survey aplicada entre 2023 e 2024 com entregadores e motoristas de plataformas digitais no Distrito Federal e seu entorno. O objetivo era produzir uma fotografia sobre as percepções e os anseios destes frente ao debate que se fazia no país sobre a regulação das duas categorias, com a instauração de um Grupo de Trabalho Pleno pelo governo federal ao longo do ano de 2023. Além desse método de pesquisa, nosso grupo também realizou diversas pesquisas de campo, sobretudo observação dos locais de trabalho, além de entrevistas em profundidade com quase 40 trabalhadores das duas categorias em 2024. Estas últimas, com duração média de 1h30, buscaram aprofundar nosso conhecimento sobre as razões pelas quais estes sujeitos se posicionam diante das questões do trabalho e da política. Para isso, buscamos compreender a sua trajetória de vida pessoal e profissional, ressaltando suas experiências pregressas para então compreender suas escolhas de trabalho atuais e seus sonhos futuros.
Ao ler o nosso trabalho, o advogado da Rappi sabe que apontamos para evidências concretas de uma profunda relação de subordinação dos trabalhadores com estas plataformas digitais. Nossa posição está também ancorada em outros trabalhos científicos publicados em revistas do mundo todo. Dessa forma, é uma falácia afirmar que estes trabalhadores são autônomos. O termo correto, utilizado inclusive no meio jurídico de vários países, é de “falsos autônomos”. São falsos, pois as plataformas utilizam de diversas ferramentas e artimanhas para mascarar a relação de subordinação e se livrar de qualquer responsabilização pelo trabalho de seus empregados. São falsos, pois para haver autonomia o trabalhador deveria ter a capacidade de decidir qual serviço aceitar, em qual horário, em qual região geografia e sob qual valor. Como já tem sido demostrado por outros estudos e matérias na mídia, estes trabalhadores não podem negociar os valores dos serviços e não podem rejeitar uma demanda sem correr o risco de serem punidos pela plataforma. Em muitos casos, eles não podem nem mesmo fazer o horário que desejam, pois estão cada vez mais submetidos a horários fixos. Por fim, nem mesmo são livres para escolher as rotas em que vão percorrer para realizar o serviço de entrega de uma mercadoria ou de transporte de um passageiro, visto que já temos inúmeros relatos em processos judiciais de que são punidos por saírem da rota estabelecida pelo algoritmo ou pelas subcontratadasiii.
Outra discussão importante, ressaltada pela nossa pesquisa, é sobre a opinião dos trabalhadores e das trabalhadoras. A aplicação de uma survey pode nos ajudar a compreender movimentos na percepção e nas atitudes políticas de grupos sociais, em determinado contexto e época. No entanto, ela não permite compreender processos subjetivos e políticos mais amplos e profundos que estão interligados com a historicidade, com as tradições políticas e com influências que estão além do contexto do trabalho. É por isso que pesquisas empíricas fotográficas como uma survey devem ser complementadas por investigações qualitativas mais profundas.
Não se pode compreender a visão sobre o trabalho desta camada da classe trabalhadora sem levar em consideração a histórica precarização estrutural do nosso mercado laboral. Ela se reproduz sobretudo com a informalidade, mas também em diversos empregos com contrato de trabalho muito mal remunerados e com poucos direitos garantidos. Não se trata apenas da manutenção de um exército de reserva, fundamental para os ciclos do capitalismo, senão de um contingente totalmente marginalizado e despossuído de qualquer possibilidade de acesso aos empregos mais bem remunerados, estáveis e com proteção social. Aqui também há a reafirmação do racismo estrutural, que mantém negros e negras na informalidade, no desemprego ou nos empregos com contrato de trabalho precários. Não à toa, muitos dos entrevistados ao justificar seu apoio ao atual modelo plataformizado, fazem referência às suas experiências traumáticas como celetistas, marcadas por racismo, assédio moral, assédio sexual, baixos salários e altas jornadas.
Dada a desvalorização e a perda do poder de compra que o salário mínimo sofreu nas últimas décadas, os trabalhadores acreditam na possibilidade de auferirem uma renda maior no trabalho em plataformas. Identificam que o enquadramento desse trabalho segundo o regime celetista limitaria suas possibilidades de ganhos. Segundo a pesquisa Teletrabalho e trabalho por meio de plataformas digitais 2022iv, os trabalhadores por aplicativo recebiam em média R$ 1.784 no 4º trimestre de 2022, valor um pouco superior ao salário mínimo vigente. Na pesquisa que realizamos em 2021, junto aos entregadores de aplicativos do Distrito Federal e entorno, encontramos um rendimento mediano líquido no valor de R$ 1.237,50, também ligeiramente superior, o que descontrói a ideia de que o rendimento obtido por meio das plataformas digitais é significativamente mais vantajoso que o obtido por meio de um contrato tradicional de trabalho.
A relação estabelecida entre os trabalhadores e as plataformas digitais pode ser enquadrada como tipicamente assalariada, o que difere da ideia de autônomo. Em sua forma concreta, o trabalho assalariado pressupõe um pagamento relativo ao preço da força de trabalho utilizada. Seria, portanto, a remuneração das atividades exercidas pelos trabalhadores ou, sob a perspectiva dos empresários, do consumo da força de trabalho. No entanto, é importante destacar que “o que o operário vende não é diretamente o seu trabalho, mas a sua força de trabalho, cedendo temporariamente ao capitalista o direito de dispor dela”